Desigualdades sociais: A inteligência artificial está pecando com o essencial? - Vinicius Marchese
Desigualdades sociais: A inteligência artificial está pecando com o essencial?

Há poucos dias viralizou um artigo do Pedro Fernando Nery, no Estadão, que, segundo o colunista, foi integralmente escrito por meio de uma ferramenta de Inteligência Artificial. Eu mesmo já escrevi alguns artigos em que reforcei a força revolucionária da IA na assertividade da compilação de dados e sua possibilidade de aliada do poder público, por exemplo, na busca por soluções sociais. No entanto, hoje eu escrevo para fazer um alerta. Como pode a tecnologia e a ciência se desenvolverem tanto e, ao mesmo tempo, as desigualdades sociais aumentarem no mundo? Progresso econômico e científico não deveria ser sinônimo de progresso social? 

Acompanhei, atento, ao Fórum Econômico Mundial, em Davos, na Suiça, e fiquei assustado ao ver os dados do Banco Mundial de que 1% da população mais rica do mundo detém mais de 60% de toda a riqueza global. Mais estarrecedor ainda é ver que todo o progresso científico, a Inteligência Artificial, o aperfeiçoamento das engenharias e a revolução digital parecem ocorrer em uma realidade paralela à em que a maior parte da população vive. Se, no passado, temíamos o desemprego estrutural, em que máquinas substituíam o trabalho braçal do homem, hoje convivemos com o desemprego “neoestrutural”, em que a tecnologia não só substitui o trabalho manual, mas também o intelectual.

Se você ainda não leu à coluna que mencionei no início deste artigo, recomendo que o faça. Nele, o colunista chega a brincar com a possibilidade do texto ter sido “a sua melhor coluna”, como se uma ferramenta artificial fosse possível de substituir o talento do articulista. E o que nos assusta é que esta substituição está sendo cada vez mais real. Nós engenheiros, já vivemos esta realidade de substituição de tarefas há algum tempo. Afinal, quem vai preferir um cálculo manual do engenheiro no lugar do cálculo feito pelo supersoftware que nunca erra? E isso precede a existência da IA como vemos hoje.

E, se de um lado temos cérebros virtuais “pensando” e desenvolvendo tarefas intelectuais que demoraríamos muito mais tempo e com um risco de erro muito maior, de outro temos um sistema educacional em que a realidade virtual ainda é um luxo. Como fazer com que nós, seres humanos, tenhamos capacidade de exercer atividades complexas que possam acompanhar o progresso da ciência, se a nossa escola e a nossa universidade seguem os mesmos preceitos há séculos? Precisamos, de forma muito mais do que urgente, garantir o acesso e o conhecimento sobre as tecnologias existentes no mundo. E não dá pra fazer isso só quando sentarmos no banco do curso de engenharia. Isso deve vir praticamente “do berço” educacional.

Segundo um estudo feito pelo Institute For The Future, na Califórnia, cerca de 85% das profissões que teremos daqui a 10 anos ainda nem existem. Quando paro para pensar nas crianças e jovens, que estão hoje na escola, automaticamente o meu raciocínio me guia para o fato de que teremos 85% de possibilidades de profissões em que não teremos pessoas devidamente preparadas para assumi-las. E, quando vamos para a faixa dos adultos que já têm suas profissões, a previsão ainda é mais trágica: suas profissões podem deixar de existir. Existiria alguma solução diante de uma realidade tão confusa e contraditória quanto a que vivemos?

No livro A Paixão segundo G.H, Clarice Lispector escreve que  “Na exigência de vida tudo é lícito, mesmo o artificial”. Ela diz que “o artificial é às vezes o grande sacrifício que se faz para se ter o essencial.” Pensando sob este aspecto, ao meu ver, este acelerado passo da Inteligência Artificial pode nos ajudar a encontrar “fórmulas” que nos ajudem a dar um salto na economia sustentável, no cooperativismo e, mais ainda, em uma forma de melhorar o acesso e a formação da nossa sociedade diante de todos os recursos disponíveis.

Quando falo em “fórmulas”, não espero que o computador dite o que teremos que fazer para diminuir as desigualdades. Mas estou certo de que, por meio da Inteligência Artificial, podemos encontrar algum mecanismo de, por meio de todos os dados já existentes e possíveis de serem levantados, possamos encontrar alternativas matemáticas e empíricas para contas que, muitas vezes, nós humanos não encontramos solução. A Inteligência, por mais que tenha o título de “artificial”, não existe sem o essencial que é a nossa mão humana.

Vinicius Marchese, engenheiro e presidente do CREA-SP.